quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

CANÇÕES MEXICANAS - GONÇALO M. TAVARES


O "romance da maldade" escrito no estilo singularissimo de Gonçalo M. Tavares. Como e possivel gostar das historias tão impregnadas de mal, de violência que este narrador europeu nos conta, a proposito da sua estada no Mexico, num estilo de conversa intima? O absurdo a tocar tudo o que descreve, o absurdo a fazer pensar no que se vê e no que esta muito para alem do nosso olhar - a suscitação de reflexões constantes assentes numa imaginação perturbadoramente enraizada no real mexicano, alguns episodios perturbadores que se concebem para não compreendermos o ser humano. Concebidos simplesmente para nos sentirmos abalados nesses cantos de extrema crueldade que nos escapa e que por ser extrema, acaba, não sei como, por se tornar um desapontamento impregnado de crua beleza. O ser humano numa situação extrema de humilhaçao e medo torna-se outro ate se ver livre do perigo da morte.
Um livro que nos obriga a pensar no absurdo. Ganhamos ao absurdo, lendo-o, captando-lhe o mal. Captando-o, sem nunca o compreender. Essa sombra da maldade humana sera sempre aliciante porque toca numa loucura inconcebivel e por isso admirada pelo leitor como um ângulo raro. M. Tavares, um  mestre da escrita neste retrato do Mal.

Um excerto que sei que gostaras, Ana Bela Ana:

A queda
 Num certo sentido, isto: assumir que a energia da gravidade é coisa para alimentar os cães, se necessário – dá comida ao mundo, essa energia gravítica, como se os abutres fôssemos todos nós e, quando um homem caísse, rapidamente acudíssemos a essa queda e devorássemos a energia que fica em redor de um corpo caído, destroçado, feito em fanicos; a questão não é tanto a carne do morto, isso não interessa aos abutres, o que importa é outra coisa, são os restos que estão à volta, esses restos que nós e os cães vamos comer ou beber como se a energia fosse uma coisa material e não uma invenção da cabeça; e sim, eis o belo mundo em que poderemos crescer mais fortes, o mundo em que a cidade se alimenta da queda, das várias quedas, das quedas de um objecto, de um vaso de uma senhora distraída que com o cotovelo o faz cair; dessa queda, sim, vem energia – mas a cidade alimenta-se acima de tudo, da queda de corpos humanos: suicídios nas pontes, por exemplo, dão uma energia intensa, energia que activa o comércio do centro, que faz mexer as pessoas como se as pessoas tivessem uma pequena roldana que as accionasse: a pressa que vemos subitamente nos rostos teve origem, pois, bem lá atrás, na forma brutal e invulgar como o corpo do suicida bateu na água. Queda, portanto, como a energia que substitui o petróleo e todas as outras fontes naturais: a cidade mantém-se em movimento, as casas mantêm a luz, a electricidade não vai abaixo porque de quando em quando há um corpo que cai; um belo corpo humano em queda desde o 60º andar, ou desde o quinto andar – quanto mais alto, claro, quanto maior o percurso da queda, mais energia gravítica é libertada; e a queda só liberta energia quando é uma queda mortal, portanto os outros homens não salvam, quando muito acodem à queda, aproximam-se e fingem uma última tentativa de salvamento quando afinal estão a parasitar a energia da gravidade de que o corpo desfeito já não precisa – porque certamente há muitas ciências e uma delas poderia pensar na diferença da queda de u corpo já morto e de um corpo vivo. É como se no corpo morto não fosse já a terra que puxa, mas o corpo que se deixa cair. Tem uma passividade dupla, o corpo morto, e ninguém faz força contra quem não reage – a terra é assim, não é diferente de um homem médio corajoso: se não lutas eu também não; o corpo morto cai e a sua queda, mesmo que do alto de sessenta andares, liberta energia, sim, e muita e importante, mas acredita-se que a queda de um corpo vivo é sempre mais forte, mais poderosa, mais generosa – oferece mais à cidade. A isso se chama sacrifício se vivêssemos noutros tempos, mas assim está bem. E os homens que recolhem o lixo são agora acompanhados por outros que recolhem as quedas. Uns recolhem os mortos e o lixo, enquanto ao lado deste grupo, outros homens recolhem a queda – e não os corpos -, como se esta fosse elementos com átomos, um elemento com substância. Mas a queda é isto mesmo: os homens recolhem uma sensação, tentam absorvê-la como u fato absorve água e a faz desaparecer e a certa altura não existe fato e água, mas apenas fato húmido; eis o que procuram os que levam a energia que se libertou na queda de um corpo sólido para a sua velha madre que está a morrer, ou para os seus filhotes, para que cresçam grandes e fortes, e a vida é isto: um certo prazer que vem da queda dos outros. Roubei a energia gravítica de uma queda e aqui estou eu a trazer o esforço do meu dia para a mesa da família. Vamos comemorar e temos energia suficiente e, sim, eis como aconteceu um certo dia, as quedas tornaram-se indispensáveis: um empurra o outro para que a cidade não pare.

1 comentário:

Seve disse...

Li este livro e fiquei completamente a zero, e eu que tanto tenho gostado dos livros que já li do Gonçalo M. Tavares, nomeadamente "JERUSALÉM" e "MATTEO PROCURA O EMPREGO", mas este abaixo de zero (para mim, claro porque não entendi nada de nada)