sexta-feira, 25 de novembro de 2011

LIVROS QUE FICAM

Maravilhoso, O Corpo Enquanto Arte é um exercício literário e filosófico que por isso mesmo deixa o leitor na dúvida até ao fim: o que apreciar em primeiro lugar? Que beleza? A da lingua no estilo depurado e essencial de DeLillo ou a das suas questões existenciais (quase inexistentes no nosso século tão limado de inteligência em tudo!), da sua voz interior que aponta em todos os momentos para a essência do tempo, do amor, da solidão de que todos somos feitos e, a partir desta riqueza reflexiva, a necessidade do corpo perante o abandono, a entrega da consciência ao desconhecido até ao limite do desejado, enfrentando (mas adiando) o vazio provocado pela morte da pessoa mais importante. Que difícil é avançar de beleza em beleza...Um excerto:

«Por que não há-de a morte de uma pessoa que amamos arrastar-nos para a mais lúgubre decadência? Não sabemos como amar aqueles que amamos até ao dia em que eles desaparecem abruptamente. Só então nos apercebemos daquela pequena distância em relação ao seu sofrimento que poucas vezes soubemos superar, do modo como nos resguardámos, como só raramente abrimos o nosso coração, sempre a tecermos as nossas ideias de deve-e-haver.
Ela alimentava estas ideias com todas as partes do seu ser. Olhos, mente e corpo. Percorria as ruas inclinadas da cidade sem dar nas vistas, a acalentar estas ideias, ia comprar produtos de mercearia e ferragens e embrenhava-se nestes pensamentos até um certo ponto, parada no longo corredor, no meio das fechaduras, ferramentas e objectos de vidro.
Por que é que a morte dele não havia de te mergulhar em paroxismos de dor, fazendo-te perder a compostura e rasgar as roupas, aos gritos? Porque havias de te adaptar a essa merda? Ou renderes-te a ela de lábios cerrados, num luto elegante? Porquê esquecer Rey se podes ir até ao fundo do corredor e encontrar a forma de o trazer para junto de ti?
Mergulha mais fundo, pensou. Deixa que a morte te arraste para as profundezas. Vai onde ela te levar.
Por vezes as suas reflexões faziam-se destes incitamentos, dirigidos a alguém que não era bem ela própria. Outras vezes, recorria a outras fórmulas. Pensava em rostos a pairarem no ar, mesmo diante das órbitas dos seus olhos, o do homenzinho desaparecido quando conseguia recordar-lhe as feições.
Chamo-me Lauren. Mas cada vez menos.»

in O Corpo Enquanto Arte, de Don DeLillo, Relógio d'Água, pp. 116, 117

Sem comentários: