quinta-feira, 15 de setembro de 2011

EXCERTOS QUE FICAM

«Törless olhava vagamente pela janela para o jardim vazio, onde já ia anoitecendo.
Beineberg falava. Da Índia. Como de costume. O pai, que era general, prestara aí serviço no exército britânico, ainda jovem oficial. E não se limitara, como a maior parte dos europeus, a trazer de lá esculturas, tecidos e pequenos ídolos fabricados em série; sentira e guardara também em si alguma coisa do misterioso, bizarro e já crepuscular budismo esotérico. E passara ao filho, desde a infânca aquilo que aprendera e mais tarde ainda fora lendo sobre a matéria.
Era, aliás, um caso singular no que às leituras se refere.
Era oficial de cavalaria e não apreciava livros. Desprezava igualmente romances e filosofia. Quando lia, não queria ser obrigado a reflectir sobre opiniões e polémicas, mas sim, logo ao abrir o livro, entrar, como por uma porta secreta, no âmago de conhecimentos específicos. Tinham de ser livros cuja simples posse fosse já uma espécie de sinal iniciático de uma ordem e garantia de revelações sobrenaturais. E só encontrava isso nos livros da filosofia indiana, que para ele não pareciam ser apenas livros, mas revelações, coisas reais - chaves de mistérios, como os livros de alquimia e magia da Idade Média.
Este homem sadio e activo, que cumpria rigorosamente os seus deveres e para além disso montava quase diariamente os seus três cavalos, isolava-se com esses livros, quase sempre ao cair da noite.
Escolhia então uma página ao acaso e pensava se seria nesse dia que o seu mais secreto sentido se lhe iria revelar. E nunca ficava decepcionado, ainda que muitas vezes tivesse de reconhecer  que não passara do propileu do templo sagrado.
Assim, pairava à volta deste homem enérgico, queimado do sol e do ar livre, qualquer coisa como um mistério solene. A sua convicção de que a cada dia se encontrava nas vésperas de uma revelação grandiosa e retumbante dava-lhe uma secreta superioridade. Os seus olhos não eram sonhadores, mas tranquilos e duros. A sua expressão tinha sido formada pelo hábito de ler livros em que nenhuma palavra podia ser retirada do seu lugar sem alterar o sentido oculto, pela ponderação prudente e atenta de cada frase em busca de sentidos e duplos sentidos.»

Robert Musil, As Perturbações do Pupilo Törless, Dom Quixote

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