quarta-feira, 27 de abril de 2011

O livro de poesia 1de Gonçalo M. Tavares publicado na Relógio D’Água em 2004, recebeu o prémio Treci Trg’ no Festival de Poesia de Belgrado permitindo que o escritor partilhasse o prémio com Brian Henry (EUA) e Adam Wiedemann (Polónia). Saiu recentemente a 2ª edição (Março de 2011) que é uma preciosidade. Deixo um poema do livro 7, Autobiografia, dos muitos magníficos que escreveu:

os grupos

Mas é estranho isto, e receio o que a vida vai
fazendode mim sem a minha autorização.
Com 18 anos adorava mesas grandes, divertia-me,
via no grupo movimentos e excitações a que
Não chegava sozinho. Como se a alegria entre
Vinte pessoas fosse uma língua que um ser vivo
Isolado não conseguisse formular.
Não morrerei ignorando essa língua, mas agora,
Fujo dela: cinco pessoas numa mesa assustam
como um assalto: dá-me! , sinto que dizem,
E a expectativa dos outros em relação à frase,
Ao silêncio ou à minha imobilidade,
Encosta o frio à camisa que trago,
Como o punhal discreto de um bom assaltante.
Não gosto de grupos, de aglomerações intermédias
Entre a amizade e o exército. A amizade faz-se de um
Para um, por vezes de dois para um; em matéria de sinceridade
O número quatro assusta-me. 

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Ondjaki

Amiguinha doce...quis colocar aqui novamente este filme como forma de nos lembrarmos que,  no dia 18 de Abril,  tivemos o privilégio de  conhecer  Ondjaki no encontro Literatura em Viagem...

sábado, 16 de abril de 2011

RICARDO REIS - A FLOR QUE ÉS, NÃO A QUE DÁS, EU QUERO

A flor que és, não a que dás, eu quero.
Porque me negas o que te não peço?
Tempo há para negares
Depois de teres dado.
Flor, sê-me flor! Se te colher avaro
A mão da infausta sphynge, tu perenne
Sombra errarás absurda,
Buscando o que não deste.

Publicado na revista Athena, nº 1, 1924

sexta-feira, 15 de abril de 2011

POEMAS QUE FICAM

I

Corroendo
As grandes escadas
Da minha alma.
Água. Como te chamas?
Tempo.


Vívida antes
Revestida de laca
Minha alma tosca
Se desfazendo.
Como te chamas?
Tempo.


Águas corroendo
Caras, coração
Todas as cordas do sentimento
Como te chamas?
Tempo.


Irreconhecível
Me procuro lenta
Nos teus escuros
Como te chamas, breu?
Tempo.

Hilda Hilst, Da morte, Odes Mínimas, 2003



quinta-feira, 14 de abril de 2011

DESIDÉRIO MURCHO - FILOSOFIA EM DIRECTO

«Quando entramos num avião, não votámos no piloto. Não controlámos as suas competências. Outras pessoas e instituições fazem isso por nós. Todavia, os pilotos de aviões são muitíssimo mais competentes, a ajuizar pelo índice de erros que cometem, do que os governantes. Fossem aqueles como estes e todos os dias cairiam aviões por esse mundo fora. (...) Por que não fazer com a governação algo semelhante ao que fazemos no caso da pilotagem de aviões?
A ideia de ter governantes com o mesmo grau de profissionalismo e competência que temos noutras áreas é atraente. O problema é que não sabemos bem como poderíamos fazer tal coisa. Teriam os governantes de ser doutorados em governação? Mas, nesse caso, como poderíamos garantir que esses doutoramentos teriam a qualidade necessária para garantir a competênciados governantes?
Talvez no futuro consigamos ter cursos de governação de grande qualidade - se bem que num país que não tem governantes particularmente competentes, não é de esperar que tenha professores de governação particularmente competentes. Mas, ao passo que é razoavelmente fácil determinar se alguém é ou não um piloto competente, é muito mais difícil determinar se alguem é ou não um governante competente (...)»

segunda-feira, 11 de abril de 2011

DON DELILLO - PONTO ÓMEGA

«No deserto do Arizona. Um jovem realizador obcecado com uma ideia para um filme: um único plano-sequência, uma única personagem. Frente à câmara e encostado à parede («como num assalto ou num fuzilamento»), está Richard Elster, um intelectual que, ao serviço do Pentágono, traçou a cartografia conceptual da Guerra do Iraque («eu queria uma guerra em haiku… uma guerra em três versos»). Quando a filha de Elster entra em cena, o fio da conversa filosófica dos dois homens é abruptamente cortado e a dinâmica da história conhece uma dramática inflexão.»
(Contracapa)

Neste romance conseguimos ver uma autêntica radiografia da alma humana ao mesmo tempo que a construção de uma história invulgar, com apenas três personagens, também elas fortemente invulgares (talvez pela sua pureza ou estado humano bruto).
A linguagem ganha as cores da realidade pois é maximamente depurada, apontando de igual forma para os contornos e para o centro de tudo. Reiterando a opinião assinada por The Times são admiráveis   os "vislumbres de uma beleza despojada" que o romance nos concede através desta longa meditação sobre as ambições humanas, sobre um tempo de retiro num deserto assustadoramente só, num espaço que lembra a eternidade. Elster e o narrador são verdadeiramente humanos na descrição das singulairdades que sobre si nos fazem saber (são os fármacos que Elster guarda num armário velho da casa de banho, são as peles roídas dos seus dedos que ajudam a defini-lo, a construí-lo tão humanamente assustador). Impressionou-me o sentimento de perda (do pai, Elster, para com a sua filha, Jessie) e a fantástica abertura e fecho do romance, que se confundem na descrição das imagens de um filme projectado numa velocidade afrouxada, do princípio ao fim, até alcançar a duração de vinte e quatro horas consecutivas. "Um filme em estado puro, tempo em estado puro" como nos diz o narrador. Um livro de literatura autêntica que transborda de sabedoria. Um livro para se ler muito devagar, muito para além das mesmas 24 horas que o filme que vemos logo nas páginas iniciais demora a passar em câmara lenta, com a inteireza da essência de tudo. Para saborear com lentidão.

Um excerto:
«Certa vez, eu olhara  para dentro do armário dos medicamentos na casa de banho dele. Não precisei de abrir a porta do armário, já que não havia porta. Fiadas de frascos, tubos, embalagens de comprimidos, quase três prateleiras repletas, e mais alguns frascos, um deles aberto, sobre a tampa do autoclismo, e vários folhetos inclusos espalhados sobre um banco, desdobrados, exibindo avisos escritos em pequenos caracteres a negrito.
- Não são os meus livros, nem as minhas conferências, nem as minhas conversas, nada disso. É o raio do espigão, é a pele morta, é aí que eu estou, a minha vida, de então até cá. Falo durante o sono,, sempre falei, a minha mãe dizia-mo em pequeno e não preciso de que ninguém mo diga agora, eu sei-o, ouço-me, e isto é o mais significativo, alguém devia fazer um estudo do que as pessoas diem enquanto dormem, e provavelmente alguém já o fez, um paralinguista qualquer, porque é mais relevante do que as ilhentas cartas particulaes que um homem escreve ao longo da sua vida e é também literatura.
Nem tudo eram medicamentos receitados pelo médico, mas a maior parte era-o, e tudo aquilo era Elster.»

Don DeLillo, Ponto Ómega, Sextante Editora

sábado, 9 de abril de 2011

CONTOS QUE FICAM

Um livro de contos que vale a pena ler, com especial destaque para o originalíssimo e impressionante conto que dá o título ao livro, Pássaros na Boca, escrito por uma escritora muito nova, Samantha Schweblin, com apenas 33 anos, considerada por El Mundo “uma das vozes mais potentes da nova narrativa argentina”. Para muitos, promete, pela singularidade da sua escrita, ser a  herdeira directa dos maiores contistas argentinos do século XX, como Borges, Bioy Casares ou Cortázar.
Um excerto deste conto inquietante: Pássaros na Boca:
«(…) Sílvia voltou com uma caixa de sapatos. Trazia-a direita, com ambas as mãos, como se se tratasse de algo delicado. Foi até à gaiola, abriu-a, tirou da caixa um pardal muito pequeno, do tamanho de uma bola de golfe, meteu-o dentro da gaiola e fechou-a. Atirou a caixa ao chão e afastou-a com um pontapé, para junto de outras nove ou dez caixas semelhantes que e iam acumulando debaixo da secretária. Então Sara levantou-se, o seu rabo-de-cavalo brilhou de um e outro lado da nuca, e foi até à gaiola dando, pelo caminho, um salto, como fazem as meninas com menos cinco anos do que ela. De costas para nós, pondo-se em bicos de pés, abriu a gaiola e tirou o pássaro. Não consegui ver o que fez. O pássaro guinchou e ela esforçou-se um momento, talvez porque o pássaro tentava escapar. Sílvia tapou a boca com a mão. Quando Sara se virou para nós, o pássaro já lá não estava. Tinha a boca, o nariz, o queixo e ambas as mãos cheias de sangue. Sorriu envergonhada, a sua boca gigante arqueou-se e abriu-se, e os seus dentes encarnados obrigaram-me a levantar-me de um salto. Corri para a casa de banho, fechei-me à chave e vomitei na retrete. Pensei que Sílvia me seguiria e começaria a despejar culpas e ordens do outro lado da porta, mas não o fez. Lavei a boca e a cara, e fiquei à escuta diante do espelho. (…)»

Samanta Schweblin, Pássaros na Boca, Cavalo de Ferro, pp.41, 42

domingo, 3 de abril de 2011

Gosto de malas de viagem. Lembram-me de que o real é outro cada vez que decidimos deslocar-nos e experimentar a distância. 
Gosto de livros que viajam comigo e guardam surpresas tão grandes quanto as da viagem.

NÃO HÁ DOMINGO SEM POESIA

MEDOS

Medo do amor
quando tudo é fome.

E onde tudo é tão pouco,
medo de a carícia
despertar insuspeitos infernos.

Medo de sermos
só eu e tu
a humanidade.

E morrermos
de tanta eternidade.

Mia Couto, Tradutor de Chuvas, Caminho, 2011