domingo, 13 de fevereiro de 2011

NÃO HÁ DOMINGO SEM POESIA

NEM DIÁLOGO, OU QUASE


Um tempo pouco apetecido – ou muito apetecido, igual a esta nuvem, a este rio que vai e vem, mas não fica nunca. «Escreve», disse.


Imagino-te, minha mão,
numa sala cheia de sol,
as cortinas transparentes ao lado,
uma mesa ampla.
Dizes-me: «escreve».


Desejar uma onda,
uma avalanche de paixão entre os dedos,
o tempo: este papel pequeno.
Escuto, mas há coisas com gume de espada
e não consigo obedecer como gostava.


Estão impressas na memória,
as palavras,
mas era aqui que um verso do avesso,
sons transparentes,
haver bolhas de sons

Como uma sala a sol,
os grãos de luz
na mesa muito ampla
não formam um padrão que se organize.
«Escreve»,
continua a minha mão.


Mas o céu repete-se tão claro,
o rio é como roda que não pára,
bicicleta com aros de metal fundente.
E o frio sente-se aqui.


«Não sei», respondo-lhe.
«Comprei agora este caderno, a sua capa é verde,
não conheço esta mesa, nem o seu mármore,
não há família entre mesa, caderno, esta nova caneta,
onde se esconde a mesa que conheço?,
o verde carregado?,
não sei», insisto.


«Só te conheço a ti, ó minha mão.
E até hoje me pareces longínqua.
Onde está essa onda?
Onde a avalanche de que eu precisava?»

Toca-te devagar a outra mão.
Conhecem-se a calor.
Mas, eu?
Entre verde e caderno, tudo novo,
o azul quase gume,
as espadas de gume circular,
o tempo em vidro,
é tão fácil perder-te.
«Talvez virando aí à tua esquerda», digo-te,
«descendo-me do ombro.
Talvez aí eu te consiga ver ao longe,
acenar-te sem sons».


«É por aqui», repito.
Mas tu não vês a luz
que passou a vermelho e de repente.
E moves-te entre carros, sons de carros,
de vozes.


E só agora, e afinal, reparo
que a minha mão nunca saiu daqui,
ficou entre cadeiras, sossegada.
Não está dispersa,
não era sua a voz,
por isso essa avalanche lhe pareceu serena.


Chamei-vos «minha mão»,
mas sois os monstros largos que me assaltam.
Já não é sol o sol,
é deste tempo o tempo.
E todavia, pesadelos meus,
podemos tomar chá, se desejardes,
vós que não me sois mão,
mas lhes sabeis da forma, a imitais,
vos transformais em dedos,
unhas, sangue.


Vinde,
ressuscitados em carne e gente,
e sentai-vos aqui.
Olhai: as minhas duas mãos,
as duas:
preparam-vos o espaço.
Não sei como chamar-vos, por que nome.
Parcas, moiras, melopeias de brilho.
Não sei como chamar-vos.


Mas finalmente escrevo.

Ana Luísa Amaral, Raízes





















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