domingo, 20 de fevereiro de 2011

NÃO HÁ DOMINGO SEM POESIA

Desta edição bilingue da Assírio & Alvim, com tradução de Maria de Loourdes Guimarães, destaco As Tulipas, poema que comove pelo despojamento dos nexos da vida, pela desesperança e pelo desencanto que o sujeito poético, hospitalizado, imprime nas suas palavras. As tulipas, da cor da sua grave ferida interior, espiam-na, sugam-lhe todo o oxigénio (referência arrepiantemente irónica, para quem sabe que a própria Sylvia, se suicidará na cozinha de sua casa com a libertação premeditada do gás do fogão).
E essa imagem poderosa das tulipas cor-de-sangue, da sua ferida exposta à luz do sol, a contrastar com as paredes brancas do quarto onde repousa, encontrando no auto-abandono a sua verdadeira libertação - essa imagem gritante da cor sangrenta das tulipas, de seres vivos, como animais perigosos e asfixiantes à solta, perturbadoras por este visualismo pleno de vitalidade, figura anímica que destrói a própria vida ao sujeito poético pelo simples facto de respirar o mesmo ar daquele quarto, esculpe intensamente um drama puramente humano. Inesquecíveis, As tulipas, da imortal poeta Sylvia Plath:

As túlipas são demasiado sensíveis; é Inverno aqui.
Vê como tudo está branco, silencioso e calmo.
Deitada, isolada e calma vou apreendendo a quietude
enquanto a luz incide naquelas paredes brancas, nesta cama,
                                                                    nestas mãos.
Não sou ninguém; nada tenho a ver com sobressaltos.
Entreguei o meu nome, as minhas roupas de sair às
                                                                   enfermeiras,
a minha história ao anestesista e o meu corpo ao cirurgiões. (…)
Não queria flores, apenas queria


estar prostrada com as palmas das mãos para cima e ficar
                                                                        toda vazia.
Como me sinto livre sem que ninguém faça ideia da
                                                                   libertação…
A paz é tão intensa que nos entorpece
e nada exige em troca, uma etiqueta com o nome, algumas
                                                                       bugigangas.
Aquilo a que finalmente os mortos se agarram: imagino-os
introduzindo-as na boca, como se fosse hóstias.
Mais do que tudo o vermelho intenso das túlipas fere-me.
Mesmo através do papel de celofane as ouvia respirar
suavemente, por entre as suas faixas brancas, como um
                                                                 bebé medonho.
A minha ferida corresponde à sua cor rubra.
São subtis: parecem pairar, embora me esmaguem,
perturbando-me com as suas línguas súbitas e a sua cor,
uma dúzia de vermelhos pesos de chumbo em volta do

                                                                              meu corpo.

Nunca alguém me vigiara, vigiam-me agora.
As túlipas voltam-se para mim, assim com a janela
donde, uma vez por dia, a luz se espraia e esvai
                                                                             lentamente,
e vejo-me, estendida, ridícula, uma sombra de papel
                                                                               recortado
entre o olhar do sol e o olhar das túlipas,
e, sem rosto, quis apagar-me.
As túlipas plenas de vida comem-me o oxigénio.


Antes de elas virem todo o ar era calmo,
entrando e saindo, sopro a sopro, sem alvoroço.
Então as túlipas encheram-no com um forte ruído.
O ar agora embate nelas e redemoinha como um rio
embate e redemoinha num engenho imerso e vermelho de
                                                                              ferrugem.
Chamam a minha atenção, que era feliz
quando se entretinha e descansava despreocupadamente.

Também as paredes parecem animar-se.
As túlipas deviam estar atrás de grades como animais
                                                                                  perigosos;
abrem-se como a boca de um animal africano,
e é ao meu coração que estou atenta: ele abre e fecha
o seu vaso de florescências vermelhas pelo puro amor que
                                                                                   me tem.
A água que saboreio é quente e salgada como o mar,
e vem de país tão longínquo como a saúde.

Sylvia Plath, Pela Água, Assírio & Alvim

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