sábado, 5 de fevereiro de 2011

ANTOLOGIA POÉTICA - CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

Uma Antologia Poética (da Relógio D'Água) que vale a pena ter para ler muitas vezes e dizer apaixonadamente (para dentro e para fora de nós). Três poemas dos poemas:

NO MEIO DO CAMINHO

No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.


Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra

INFÂNCIA

Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.


Minha mãe ficava sentada cosendo.
Meu irmão pequeno dormia.
Eu sozinho menino entre mangueiras
Lia histórias de Robison Crusoé,
Comprida história que não acaba mais.


No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu
 a ninar nos longes da senzala - e nunca se esqueceu
 chamava para o café.
Café preto que nem a preta velha
café gostoso
café bom.


Minha mãe ficava sentada cosendo
Olhando para mim:
- Psiu...Não acorde o menino.
Para o berço onde pousou um mosquito.
E dava um suspiro...que fundo!


Lá longe meu pai campeava
No mato sem fim da fazenda.


E eu não sabia que minha história
Era mais bonita que a de Robison Crusoé.

O LUTADOR

Lutar com palavras
é a luta mais vã.
Entanto lutamos
mal rompe a manhã.
São muitas, eu pouco.
Algumas, tão fortes
como o javali.
Não me julgo louco.
Se o fosse, teria
poder de encantá-las.
Mas lúcido e frio,
apareço e tento
apanhar algumas
para meu sustento
num dia de vida.
Deixam-se enlaçar,
tontas à carícia
e súbito fogem
e não há ameaça
e nem 3 há sevícia
que as traga de novo
ao centro da praça.


Insisto, solerte.
Busco persuadi-las.
Ser-lhes-ei escravo
de rara humildade.
Guardarei sigilo
de nosso comércio.
Na voz, nenhum travo
de zanga ou desgosto.
Sem me ouvir deslizam,
perpassam levíssimas
e viram-me o rosto.
Lutar com palavras
parece sem fruto.
Não têm carne e sangue…
Entretanto, luto.


Palavra, palavra
(digo exasperado),
se me desafias,
aceito o combate.
Quisera possuir-te
neste descampado,
sem roteiro de unha
ou marca de dente
nessa pele clara.
Preferes o amor
de uma posse impura
e que venha o gozo
da maior tortura.


Luto corpo a corpo,
luto todo o tempo,
sem maior proveito
que o da caça ao vento.


Não encontro vestes,
não seguro formas,
é fluido inimigo
que me dobra os músculos
e ri-se das normas
da boa peleja.


Iludo-me às vezes,
pressinto que a entrega
se consumará.
Já vejo palavras
em coro submisso,
esta me ofertando
seu velho calor,
aquela sua glória
feita de mistério,
outra seu desdém,
outra seu ciúme,
e um sapiente amor
me ensina a fruir
de cada palavra
a essência captada,
o sutil queixume.
Mas ai! é o instante
de entreabrir os olhos:
entre beijo e boca,
tudo se evapora.


O ciclo do dia
ora se conclui 8
e o inútil duelo
jamais se resolve.


O teu rosto belo,
ó palavra, esplende
na curva da noite
que toda me envolve.
Tamanha paixão
e nenhum pecúlio.
Cerradas as portas,
a luta prossegue
nas ruas do sono.

Carlos Drummond de Andrade, Antologia Poética, Relógio D'Água

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