quinta-feira, 7 de outubro de 2010

MÁRIO VARGAS LLOSA - PRÉMIO NOBEL DA LITERATURA 2010

Um escritor excepcional merece receber um prémio de excepção. Foi com muita alegria que soube desta notícia. E para homenagear o autor, a literatura e este contentamento deixo um excerto de "A Tia Júlia e o Escrevedor", romance de cariz autobiográfico no qual Vargas LLosa para além de reflectir sobre o próprio acto de escrever - quer através da personagem que representa nesta autoficção quer através de  Pedro Camacho, autor de guiões de rádio e textos desprovidos de qualquer hipótese de  literariedade mas que serve de inspiração para a escrita de «Marito» ou «Varguitas») - ficciona o seu amor pela primeira mulher,  sua tia. Transcrevo para que gostes deste livro e, por extensão, deste escritor:

«Tornara-se habitual a tia Júlia vir à Pan-América.Tínhamos descoberto que era o sítio mais seguro , já que, de facto, contávamos com a cumplicidade de Pascual e do Grande Pablito. Aparecia depois das cinco, hora em que começava um período de calma (...) Os meus companheiros de trabalho, por um acordo tácito, pediam licença para «tomar um cafezinho», de modo que a tia Júlia e eu nos pudéssemos beijar e falar a sós. Às vezes eu punha-me a escrever e ela ficava a ler uma revista ou a conversar com Javier, o qual, invariavelmente, vinha juntar-se a nós por volta das sete. Tínhamos formado um grupo inseparável e os meus amores com a tia Júlia adquiriam, nesse quartinho de tabiques, uma naturalidade maravilhosa. Podíamos estar de mão dada ou beijarmo-nos sem chamar a atenção de ninguém. Isso fazia-nos felizes. Franquear os limites do sótão era sermos livres, donos dos nossos actos, podíamos amar, falar do que nos interessava e sentirmo-nos rodeados de compreensão.Franqueá-los para o exterior era entrar num domínio hostil, onde éramos obrigados a mentir e a escondermo-nos.
- Pode dizer-se que isto é o nosso ninho de amor - perguntava-me a tia Júlia. - Ou também é piroso?
- Claro que é piroso e que não se pode dizer - respondia-lhe eu. Mas podemos chamar-lhe Montmartre.
Brincávamos ao professor e à aluna e eu explicava-lhe o que era piroso, o que não se podia dizer nem fazer e tinha estabelecido uma censura inquisitorial nas suas leituras, proibindo-lhe todos os seus autores favoritos, que começavam por FrankYerby e acabavam com Corín Tellado. Divertiamo-nos como loucos e às vezes Javier intervinha, com uma dialéctica fogosa, no jogo da pirosice.
À leitura de A Tia Eliana assistiram também, porque estavam ali e não me atrevi a mandá-los sair, Pascual e o Grande Pablito e acabou por ser uma sorte porque foram os únicos a gostar do conto, ainda que, como eram meus subordinados, o seu entusiasmo fosse suspeito.Javier achou-o irreal, ninguém iria acreditar que uma família condena ao ostracismo uma rapariga por casar-se com um chinês e assegurou-me que se o marido fosse negro ou índio a história podia salvar-se. A tia Júlia deu-me uma estocada mortal ao dizer-me que o conto tinha saído melodramático e que algumas palavrinhas, como trémula e soluçante, lhe tinham soado muito pirosas. (...)»
p. 144 


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