terça-feira, 8 de junho de 2010

À VOLTA DA EPÍGRAFE

«Sabiamente, Henry James aconselhava os escritores a não escolher um louco para personagem principal de uma narração, pois não sendo o louco moralmente responsável, não haveria verdadeira história para contar.»

Gore Vidal
in Delírio, Laura Restrepo


Mas é precisamente em Delírio, de Laura Restrepo (traduzida para a nossa língua recentemente, e editada no passado mês de Maio pela Editorial Presença), obra de onde transcrevi esta interessante epígrafe, que toda a história gira, ironicamente, à volta de Agustina, uma personagem feminina em estado de loucura.
A obra começa precisamente com Aguilar (marido de Agustina) a confessar que soube que algo de terrível tinha acontecido com ela no momento em que, devido a um telefonema de um desconhecido que recebeu, vai buscar a sua mulher a um hotel e se apercebe, no preciso momento em que um homem veio abrir a porta do quarto, da imagem dela sentada ao fundo, a olhar pela janela de modo que achou muito estranho. A partir deste momento, Aguilar não reconhece mais a sua mulher e vai empreender o papel de um detective de forma a descobrir o que provocou esse estado de loucura, esse delírio em que a mesma vive.
Lembro-me também, rumando no sentido contrário daquele que nos é sugerido por Henry James, do Diário de um Louco do conceituado autor russo Nikolai Gógol, onde assistimos ao quotidiano infernal do funcionário de uma repartição que se apaixona loucamente pela filha do seu director e fica sujeito, por esse motivo, a “ouvir e ver coisas que ainda ninguém viu nem ouviu”. Ao longo do conto assistimos ao desmoronamento da razoabilidade humana, insuflado pelo sofrimento provocado por essa paixão que o leva inclusive a perseguir, de forma patológica, o animal de estimação da amada, com o anseio de perceber o que este pensa.
De Rosa Montero, destaco A Louca da Casa, no qual mais uma vez impera a extravagância, a loucura, o sonho pela descrição dos comportamentos mais íntimos dos escritores, assumindo-se um discurso próprio ora do romance autobiográfico ora da biografia (e, resumindo, um discurso sobre cada um de nós, leitores) …
Gonçalo M. Tavares com os seus "livros pretos", nomeadamente com a série O Reino investe no retrato da loucura através de variadas personagens.
Em Jerusalém, Mylia, por exemplo, fica aterrorizada desde o início da diegese com a possibilidade de alguém “olhar para si e murmurar: eis uma louca!”. Também Hinnerk é um homem cujo medo aumentava de dia para dia, sentindo-se cada vez mais ameaçado por qualquer acontecimento que aconteceria, na sua cabeça, para breve, atemorizando as crianças com o seu próprio temor ou terror.
Em Klaus Klump, vários são os loucos que vão sendo retratados primorosamente -desde Catharina, viúva e mãe de Joanna (namorada de Klaus), até à perspectivação do real e dos outros pelo próprio Klaus, o absurdo é uma marca viva na escrita desta história passada em tempo de massacre e de guerra (tão viva que chega a dialogar com o universo da loucura e do horror de Kafka).
Também em Aprender a Rezar na Era da Técnica, Gonçalo M. Tavares aborda a esquizofrenia com uma naturalidade chocante, baptizando uma das suas personagens com o nome de Buchner, fazendo com que esta personagem, através do seu nome, reavive a referência à primeira descrição pormenorizada de um estado de esquizofrenia na literatura alemã com a obra Lenz do dramaturgo Georg Buchner.
De facto, o conselho de Henry James é, pelos vistos, levado pouco a sério por tantos autores que por investirem na loucura como personagem ou como tema ou, até mesmo, como substância criativa da escrita demonstram a evidência de novos caminhos, desenhando mais do que aquilo que nos cerca e aquilo que somos, a face completamente imprevista da realidade e da existência humana, o avesso daquilo com que habitualmente contamos, definindo-nos como não somos ou não queremos ser, em última instância.
Venham os loucos à flor da literatura! No nosso século a narrativa literária é tão estilhaçada e confusa como a mente de um louco, e não deixa, desse modo, de contar histórias com verdade.

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