quarta-feira, 17 de março de 2010

A Maldade das Mulheres - Ivete Baptista

Pedi à Ivete para publicar no nosso blogue a crónica que ela me disponibilizou gentilmente para o jornal do nosso agrupamento de escolas e ela respondeu-me: "Faz com ela o que quiseres, ela já não me pertence." Com esta crónica abri uma rubrica nova à qual dei o nome Crónica sem Vergonha. Os professores e alunos que a leram na 2ª edição de O Plátano adoraram-na simplesmente. E eu também.
Mulheres Sublimes
Luís Sepúlveda, um grande escritor chileno, diz num dos seus livros que “Os mortos só morrem quando deixamos de os nomear, de contar as suas histórias”. Por isso devemos continuar a falar daqueles que amamos e que já partiram, deixando-nos o coração mais pequeno. Ao recordar o sorriso, o olhar, as palavras e os gestos, eternizamos cada momento passado na sua companhia, como se de um filme se tratasse, sem fim.
A minha mãe morreu a 4 de Janeiro de 2006. Não consegui, durante muito tempo, imaginar o que seria o resto da minha vida sem ela. Não se ultrapassa a morte de uma mãe pois não há nada neste mundo que a substitua. Comemos rebuçados de mentol para compensar a falta do cigarro, trocamos de carro, de casa, de emprego, de cidade, de amigos e até de amores, mas não trocamos a nossa mãe por nada. A nossa mãe sabe sempre o que nos vai na alma, faz o nosso prato preferido quando a visitamos, acende aquela magnífica fogueira ou o fogão a lenha, e nada se iguala ao cheiro que emana dos seus cozinhados, do calor do lume e dos seus braços. Ela é o alicerce, a casa, a força que empurra e faz andar as nossas vidas e o mundo.
Com tenra idade, a minha mãe deixou a aldeia e partiu “servir” para Lisboa. Os tempos eram difíceis e cabia aos irmãos mais velhos ajudar a sustentar a família. A minha avó, viúva com sete bocas para alimentar, não viu outro remédio senão aceitar que os filhos, ainda crianças, fossem trabalhar nem que fosse por uma tigela de caldo e um abrigo. As raparigas tinham mais sorte e normalmente eram requisitadas para criadas nas grandes cidades, nas grandes casas dos grandes senhores. Era assim a sociedade de então, já tão estratificada e injusta, onde a infância era roubada e maltratados os meninos a quem era exigido que fossem adultos ( o trabalho do menino é pouco e quem não o aproveita é louco, diz a sabedoria popular…).
Só muito mais tarde decidi arrumar o quarto dela: dei as roupas e guardei os óculos de ver. Tentei arrumar na minha cabeça que a tinha perdido. Como se arruma na nossa cabeça a morte de uma mãe?
Deixamos sempre para mais tarde as decisões difíceis. É uma forma de adiar os problemas, esperando que uma força superior os resolva, sem dor, sem lágrimas, sem perdas, nem arrependimentos.
Alguém me diz como se arruma na nossa cabeça a morte de uma mãe? Como se aceita que não a voltamos a ver, a ouvir, a beijar? Só nos resta o filme incessante a passar à frente dos olhos, as memórias e as fotografias…
Em Lisboa a minha mãe sofreu imenso. Era uma pobre rapariga da aldeia que nada entendia de cozinhados, rendas ou ferros de engomar. A patroa era uma mulher dura, exigente, que adoptou como método para educar os filhos, as criadas e o marido, uma espécie de regime militar. O Toninho e o Zezinho não podiam pisar o risco, pois esta mãe ditadora não perdoava e transformava-se no pior carrasco da triste história da Humanidade. Com as criadas não se atrevia a tanto mas também as castigava, humilhando-as, fazendo repetir vezes sem conta a mesma tarefa até ficar perfeita. “ Isaura, esta camisa está mal passada. O senhor não pode andar na rua com uma camisa neste estado”, mergulhava-a novamente no tanque de lavar a roupa e a Isaura tinha de recomeçar a operação, desde o início. “Ficava-lhe com um ódio, nem imaginas”, confessava muitos anos depois, “ O que será feito dos meninos? Que pena que eu tinha deles, levavam tanta porrada…”, concluía.
Agora já consigo falar dela. Sem raiva de a não ter ao meu lado, sem revolta por me ter deixado tão depressa, quase de surpresa. Consegui arrumar o quarto e deposito flores na sua campa, no dia do seu aniversário, no dia da mãe e no Natal, agora sem magia, sem luzes, sem gargalhadas…
(Mas dói, continua a doer esta ausência imposta, cruel – esta terrível saudade.)
A minha mãe era uma mulher muito bem-disposta. Na sua mesa havia sempre lugar para mais um e partilhava generosamente o que tinha. Adorava estar rodeada de gente feliz que escutava atentamente as suas histórias e as suas canções. Mesmo quando a doença a impediu de ter uma vida com qualidade, presenteava os filhos com as “modas” aprendidas na sua mocidade, em Lisboa. Recordo a quadra de uma em particular, a que ela chamava de “A maldade das mulheres”. Não conheço a autoria da letra mas imagino-a cantada por uma voz e um estilo únicos, ao jeito do Marceneiro:


As mulheres são interesseiras
Falsas e coscuvilheiras
Não se engana quem disser
Sempre a falarem da vida
Não há língua mais comprida
Do que a língua das mulheres
Os risos soltavam-se à sua volta e as cantigas lá continuavam, noite fora, como se o tempo tivesse ali parado, como se mais nada interessasse para além daquele lugar, daquelas gentes simples, da mesa, cúmplice da nossa alegria…A minha mãe brilhava mais do que as estrelas reluzentes das noites de Verão… e sabia-o.
“Os mortos só morrem quando deixamos de os nomear, de contar as suas histórias”

Ivete Baptista





2 comentários:

Pedro Lapierre disse...

É de facto um texto sublime e de extrema sensibilidade. Temos tantos talentos escondidos! Excelente texto e conclusão brilhante. Parabéns Ivete Baptista.

Pedro Lapierre

Anónimo disse...

Começo por dizer que li este texto na sala dos professores, quando terminei tinha os olhos marejados de lágrimas.Este texto tocou-me muito,apesar de ainda ter a minha mãe imaginei-me sem ela.Como deve doer! São as pequenas coisas do presente que quando as perdemos se tornam enormes.
Esta é a Ivete que eu conheço,sensível,inteligente,forte, talentosa... Presenteia-nos, por favor, com mais textos com esta sensibilidade e qualidade.
Teresa Pires